segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

A Sala

Sonhei contigo, connosco. Não há forma mais simples de descrever aquilo que aconteceu, tu apareceste nos meus sonhos e nós fomos felizes, durante umas horas...
A felicidade que me invadiu naquelas horas foi tanta que eu não consigo mais lidar com ela!
Eu entrei numa sala antiga, com o papel de parede rasgado em locais estratégicos, permitindo ver o cinzento do cimento por baixo das riscas verticais em tons de vermelho e olhei à minha volta, sentindo-me em casa num sítio que me era novo. Olhei para o espelho com moldura dourada, mas velha, à direita da porta por onde entrei e vi o meu corpo, o meu cabelo, mas no lugar da minha cara via algo indescritível: um borrão de formas surrealistas que se fundiam em cores quentes. Não fiquei a olhar tempo suficiente para pensar no assunto, a curiosidade que o restante espaço despertou em mim era superior ao medo e espanto que senti ao ver o meu irreflexo no espelho. Segui, olhando para o espaço que me rodeava e que se ia revelando como que um mundo de sombras que eu ilumino um pouco mais a cada passo que dou. Quando voltei a ter um momento de consciência, concluí que estava aprisionado num heptágono com duas portas, duas janelas, dois grandes sofás e apenas um espelho... Só mesmo um espelho...
O cansaço invadiu-me de repente e decidi dormitar um pouco no sofá que estava mais próximo de mim. Mal me estiquei no sofá respirei fundo, fechei os olhos e senti que fosse acordar, mas aí senti-te.
Abri os olhos em pânico e vi-te sentada à minha beira vestindo um vestido veranil de cor quente e usando um batom da mesma cor, senti as tuas sedosas mãos a acariciarem-me o rosto como se eu estivesse doente reparei no teu aroma tão doce à primeira vez que inspirei. Abri a boca para dizer algo ou para questionar o que se estava a passar e tu apenas sorriste e beijaste-me... E eu, como que mecanicamente, retribui o beijo. Assim que os nossos lábios se separaram de novo, eu expirei e senti o nosso calor. Fechei os olhos e quando os voltei a abrir estava deitado contigo, com as pernas envolvidas nas tuas e com toda a minha pele a aquecer a tua. Os beijos tornaram-se cada vez mais intensos, mas nenhuma palavra foi dita. Voltei a fechar os olhos. Quando os abri, vi-te a caminho da porta do outro lado da sala e, mesmo antes de abrires a porta, olhaste para trás e eu vi... Os teus olhos... Estavam diferentes... Havia algo diabólico no teu olhar. Sentia-me enganado, frustrado, magoado e, quando voltei a ganhar consciência de mim, estava sentado à ponta do sofá, com a cabeça entre as pernas e com lágrimas a escorrerem pela minha face. A respiração ofegante tornava-se cada vez mais e mais selvagem e já não me sentia em casa naquela sala. Por estranho que pareça, o choro era mudo, o único som que ouvi foi o som do nosso primeiro beijo. Quando pensei nisso, levantei a cabeça e olhei em frente, vendo o espelho do outro lado da sala, que agora já não refletia o meu ser, eu era todo um borrão azulado, sem olhos, com lábios vermelhos e uma boca que abria e fechava como a de alguém que ri histericamente. Toquei no espelho e dei por mim dentro do mesmo a ver o meu eu dentro da sala, mas eu estava estranho. Tudo em mim parecia bem, menos a cara. Esta fora substituída por uma máscara idêntica à minha face sorridente. Decidi olhar para trás, curioso por estar dentro de um espelho, mergulhando na escuridão profunda.
Senti um choque e acordei, na cama do meu quarto, com a cabeça na almofada em que adormeço todas as noites e acordo todos os dias. Esta realidade parece tão irreal como a outra. Os meus sonhos são pesadelos e quando acordo eles não acabam, começam.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Cidade

As luzes incandescentes dos painéis luminosos seduziam o meu olhar à medida que explorava as ruas da cidade em busca de um poleiro onde me pudesse sentar ao balcão peganhento e ressequido junto dos marinheiros, pedreiros, operários, pais deprimidos e velhos frustrados. Enquanto deambulava pelo bosque mágico de betão e espelhos gigantes (que apenas serviam para uma pessoa passar o dia inteiro acompanhada do seu ego) sentia o cheiro das sarjetas, do pneu queimado de travagens bruscas e o doce e enjoativo perfume das «dondocas» que entravam nos restaurantes «chiques» da cidade, deixando um rasto a anunciar a sua presença e o seu percurso. O som da cidade era também encantador e terrivelmente perturbante - desde o som dos motores a funcionar e das buzinas dos carros; aos grandes temas musicais populares entre os incultos deste mundo e ao murmúrio das incontáveis conversas a que assistia enquanto andava. Tudo aquilo que ouvia, cheirava e via era complementado pelo frio que sentia, pela solidão que invadia o meu ser enquanto estava naquela multidão. Sentia a crise de valores da sociedade quando um desconhecido chocava comigo e eu me virava para dizer uma simples palavra-desculpe-, mas ele já estava no meio da multidão, perdido de mim para todo o sempre. Esta vida só vale a pena enquanto eu puder chegar ao tal balcão peganhento e pedir um licor com umas pequenas pedras a flutuarem, tal e qual os icebergues junto da Antártida... E o curioso é que seria menos solitário viver lá.

domingo, 11 de dezembro de 2016

O Amor é um campo de batalha

Ouvi um estrondo de uma granada a rebentar a alguns metros de mim e vi os meus companheiros desaparecer.
Via as balas a voarem por cima das nossas cabeças e olhava nos olhos dos poucos que ainda resistiam a meu lado e o olhar de todos dizia o mesmo - medo.
Eu tentava olhar por cima da barricada para ver o nosso inimigo mas só via uma sombra distante de onde «flashes» brilhantes surgiam, seguidos de projéteis reluzentes que planavam em direção aos nossos corpos protegidos apenas por sacos de areia... é estranho... no meio de tantos gritos e rajadas de tiros, ainda conseguia ouvir os sacos a esvaziar...
Aí apercebi-me que a proteção não iria durar muito mais tempo! Mas eu olhava e olhava e só via um oponente! Como é que ele nos fazia frente incessantemente?
O muro de sacos que me protegia desmoronou e eu corri  para me salvar. Naquele momento não vi os meus companheiros que foram tão apanhados de surpresa como eu, apenas fugi... Ou melhor...tentei fugir.
O sabor da terra chegou-me à boca e o cheiro a lama inundava o meu olfato, os meus ouvidos ficaram ocupados com um som agudo constante e nada via para além do branco mais puro que alguma vez vira. Só me faltava o tato, bem, esse estava ocupado com a dor, só sentia o meu braço direito que fora baleado pelo inimigo sombra! A dor surgiu e todos os outros sentidos desligaram.
Os poucos segundos que passaram duraram uma eternidade e quando me levantei consegui ver, finalmente, o nosso inimigo de forma clara. Vi o Amor à minha frente com um ar de troça por nos fazer sofrer. Eu fiquei ferido, mas não sucumbi como tantos outros. Decidi seguir em frente, enfrentando-o. Não me tentei desviar das balas, elas simplesmente não estavam destinadas a acertar-me. Mal cheguei a um palmo de distância do Amor disse-lhe seriamente: "Para mim chega, não vou sofrer mais, mostra-me o caminho." Ele riu-se, esticou o braço para as suas costas e eu segui o meu caminho para longe do campo de batalha. Quando já estava longe o suficiente do campo para não ouvir os seus horrores reparei que eu estava limpo e sem dores, como que purificado. Olhei para a frente e no meio do mato havia uma grande árvore com uma porta entreaberta, a qual abri. Por trás desta estavas tu... À minha espera. Posso dizer que encontrei felicidade e posso também dizer: "Querida, cheguei!".