sexta-feira, 26 de maio de 2017

Transporte Coletivo

Estamos todos no mesmo autocarro com uma infinidade finita de gente sentada em lugares imaginários. Quem entra no autocarro pela primeira vez depara-se sempre com o dilema esfíngico de escolher um lugar isolado ou de se sentar junto a alguém. Vamos particularizar.
Um Tipo entra no dito autocarro e olha à sua volta, assistindo a incontáveis relações a serem criadas entre estranhos que, ao acaso, se sentaram um ao lado do outro. A par desses pares, o Tipo depara-se também com enésimos sujeitos isolados nos seus lugares. A consciência de tal facto só lhe trouxe mais fogo à fogueira do seu pensamento. Começou a tecer uma rede de ideias que entrelaçava com base no seguinte: ao entrarmos no autocarro, invejamos quem já tem par, sonhando em ter um lugar próprio, mas dividido com outro alguém; desprezamos também quem está isolado, julgando que só estão isolados porque a sua companhia não é ou não fora aliciante; assim, chegamos a uma encruzilhada, em que temos de optar entre tomar o lugar desocupado à beira de um outro Tipo que já foi como nós, ou criamos um novo lugar isolado, uma nova imagem para ser julgada.
O nosso primeiro Tipo concluiu, assim, que só ansiamos companhia pois é masoquista a ideia de ficar só. Contudo, quem opta por ficar só, já o faz graças aos seus medos: o de ganhar consciência de que é diferente de quem se senta ao seu lado ou de ser igual!
Ser igual é um castigo amável... perder a individualidade é um preço que alguns estão dispostos a pagar para se sentirem aceites, compreendidos, amados e elogiados. Mas ser diferente... oh... ser diferente é mais complexo! Ninguém nos garante que a nossa diferença é boa, pois depende da perspetiva de cada um e a nossa perspetiva nunca é a melhor, apesar de ser a única que nos dá algum grau de certeza. Procuramos certezas na vida, não reconhecendo que é em não ter certezas que está a chave para sermos nós! Sem certezas, a confiança e segurança surgem apenas de uma coisa, cuja palavra que a define tem vindo a ganhar má reputação - fé!
Conceber uma viagem neste autocarro em que o nosso estado de acompanhado ou isolado se vai alterando é inconcebível para a grande maioria das mentes que ficam fechadas nesta caixa de metal. Se se lembrassem de olhar mais vezes pela janelas, perceberiam que ainda há muito caminho para percorrer e que assumir a diferença até que alguém nos acompanhe, assumindo, por sua vez, a sua diferença, ou até que nós decidamos ir conhecer a diferença do outro, só seria uma forma de tornar toda esta viagem memorável.
Com tudo isto, voltemos então ao nosso Tipo.Por toda esta indecisão, deu por si num lugar sem companhia.  Como assumiu a sua própria diferença decidiu levantar-se e procurar em toda a infinidade finita de gente que estava no autocarro, uma outra pessoa que assumisse a diferença que a carateriza. Não se sentou durante um tempo, mas todo este tempo criou memórias de pares unidos por razões pouco sólidas, suscetíveis a serem quebradas a cada nova paragem.
A sua viagem chegou ao fim e ainda não tinha encontrado ninguém diferente, mas foi ao sair que se cruzou com a pessoa certa. Agora, o nosso Tipo já faz viagens na companhia de alguém, alguém que conhece tantos os seus medos como as suas vontades. Tendo fé de que ambos quererão sair sempre na mesma paragem.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Escala quebrada

«Sentencio todo o sentimento proveniente destes sons a ser puro!». Esta promessa que eu fiz a mim mesmo quando os meus dedos se afundaram entre duas daquelas teclas brancas e pretas. Inocente era eu por não saber que assim entrei numa espiral de mágoa e alegria, da qual só me libertarei quando o meu coração se deixar de ouvir.
As melodias da minha evolução criam marcas mais profundas no meu agir do que na memória. A sensibilidade desenvolvida permite-me entender algo que não é dito por palavras,  posso conhecer de olhos fechados, de mãos atadas e ouvidos cerrados, basta sentir. O dó que vibra em cada um de nós, sendo que cada um sol faz de si algo para lá do que em mi tenho, mas que mesmo assim, o ré e o fá são as peças que eu encaixo livremente, sabendo que algo ficou por dizer, mas nada por sentir.
O pé não me sai do pedal e eu paro no tempo, aproveitando cada segundo de inércia como se fosse a sua própria eternidade. Por mais que o pé permaneça a fundo, tudo acaba por se desvanecer, deixando-me no silêncio, somente com a memória da harmonia que outrora retirou o tempo de mim e me levou para um espaço onde eu estava só com o tudo que existia e o nada que faltava existir.
Aceito o presente que o tempo me deu e levanto o pé do pedal, para o voltar a colocar com o mesmo peso de anteriormente, agora com novas notas a ecoar no espaço-tempo que manipulo ao sentir tudo aquilo que não é dito nem feito, não é nada sendo tudo!
Toda esta espiral de mágoa por ver o fim e de alegria ao estar no início é produto de tua causa!
Só um louco fala sem nada dizer e age sem nada fazer, mas é nessa linguagem que me pedem que eu viva. Esperam que a palavra não passe de um artifício supérfluo em toda a nossa realidade. Porém, a palavra só existe na realidade que é nossa, não podendo ser considerada um adereço descartável, tal e qual a vida de cada um dos nossos dias. A palavra é mais que isso, é o som com o sentimento direcionado, é uma nova magia que surge das cinzas da que a precedeu. É música sentida e descrita, é o pináculo da humanidade, a distinção da besta do belo.
Temos o poder de falar, de combinar o sentir com o pensar. Temos a responsabilidade de não deixar que se extinga a música que vagueia no ar.

domingo, 14 de maio de 2017

Culto pagão

Um templo de colunas erguidas
Troncos marmóreos do progresso.
Fruto do culto da transformação do meio
e da paixão pela rigidez.

Colunas que não cedem,
nem na guerra contra o mestre tempo.
Mães de filhos que vieram a ser,
sem dúvida, vigas de metal.

Exatamente com a tal.
Filha de todo este culto,
eternamente cercada pelos pilares,
para lá dos quais eu sou somente um vulto.

Um vulto que dança ao vento.
Filho de um templo diferente,
nascido do ventre atento,
fruto da raiz natural.

Um galho.
Despido de folhas na primavera da vida,
contra-natura, não é?
Seria, se não fosse um galho caído.

Os galhos cedem, sabias?
Não são como os alicerces desse templo,
 sustentam apenas um templo natural,
um que se rege pelo mestre tempo.

Cedi uma vez, para bem dessa gente,
auxiliei na agricultura do não ceder, cedendo.
É que quem é galho tudo sente.
E eu, que galho sou, fui sentindo e morrendo.

Caído no chão brevemente empedrado
está o tal galho tantas vezes quebrado,
tentando ser naturalmente forte, resistindo,
acabando por ser apenas mais um indo.

Ninguém se lembra dos galhos que caem das árvores,
Mas as palavras escritas no seu papel já são recordáveis.
Mais ainda ficarão na memória as virtudes dos fortes pilares,
aqueles que nem no nunca vão pelos ares.

O galho cai na esperança de ser dois ou três,
deixando sempre o fado para o tempo,
para toda a natureza decidir.
No meio de tanta incerteza, para quê cair?

Por alguma razão, não cair é visto como progresso,
não ser a vida assim é o que peço,
mas que mais pode pedir um simples galho,
um braço destinado para sempre a cair.

Por entre as colunas vês o galho a ceder,
o vulto que te surge na vista livremente a cair.
Diz-me então o que te faz sentir!
Saber que do lado de lá está tudo a morrer.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Carris

As rodas mecanizadas do comboio embalam as duas caixas de metal para o meu destino e a tua mente para o sonho.
Tu repousas entre rodilhas de casacos, malhas e cachecóis na esperança de uma almofada e respiras fundo.
Estamos os dois sozinhos na carruagem, tirando aquele senhor um pouco a meu lado e um pouco atrás de mim, de cabelo negro carvão e tez encarnada de uma vida de copos vazios. Porém, ele não passa de uma sombra na vinheta da minha visão focada no lugar onde te senta.
Pareces tão pacífica...
Calma improvável neste berço da velocidade, da efemeridade, do culto do ter tudo do ser nada!
A tua beleza orgânica liberta-me desta prisão de metal.
Qual progresso?! Se isto é progresso, eu quero o regresso... a  casa.
Ah! A minha casa... cada vez mais distante, cada vez mais perdida na memória e nos sonhos trazidos pelos tambores dos mecanismos modernos.
Vou convidar-te para um café e uma tarde de conversa. Pode ser que me ensines a chamar a tudo isto de casa.