terça-feira, 29 de agosto de 2017

Combate

As batalhas do quotidiano perdem-se facilmente no fluído temporal, sem que o seu propósito e até o seu desenlace seja compreendido ou até reconhecido como tal. Lutamos mais contra o próprio ser sem que tenhamos noção dessas demanda do que efetivamente contra as crenças ou ações dos outros. A facilidade em transpor as nossas inseguranças e problemáticas para os outros fomenta o conflito e deteriora os relacionamentos já edificados e as novas e efémeras interações com outros nossos semelhantes.
Para facilitar a interiorização desta minha teoria imagina uma criança a brincar com um balão. Se esse balão, por acaso do surgimento de uma brisa inesperada ou por pura distração tão típica do jovial ser, lhe escapar das mãos e se perder no horizonte, a pobre criança irá sofrer com essa perda. A dor e a frustração que essa mesma criança poderá sentir como produto dessa perda não será direcionada para aquele momento, mas sim para o momento seguinte de interação (possivelmente com a mãe ou pai). Nesse momento, a criança acabará por estar birrenta, sendo insubordinada e recorrendo por excelência ao instinto para agir (mais ainda do que já é natural numa pessoa de tenra idade). Tal situação descreverá uma sequência de maus comportamentos por parte da criança, nomeadamente ao nível do choro e dos gritos. Os chamados de adultos são pouco diferentes. A raiva originada nas pequenas frustrações da vida é expelida em momentos de encontro com o que nos é familiar e que acaba por nos dar conforto para demonstrar a faceta mais irracional do nosso ser. Nesses momentos, eu apelo à compreensão mútua em relação às vulgares «birras». Esta atitude compreensiva deve partir do interlocutor da pessoa raivosa, tendo a capacidade de aceitar que o comportamento atípico do seu conhecido não tem por causa necessária uma ação ou ideal seu, mas também por parte da pessoa frustrada, reconhecendo posteriormente que cometeu uma injustiça ao entregar os seus sentimentos de revolta a quem nada tem que ver com eles.
Deste modo, é diário o combate que alguém ciente dos seus sentimentos tem em relação aos momentos corretos para libertar as suas «raivas». Todos este processo não deve ser tomado por leve e é uma habilidade de mestria dificílima, contudo, torna-se numa importante ferramenta para manter a saúde das relações que estabelecemos entre nós, permitindo-nos melhor ajuizar quem e que coisas nos causas essas mágoas.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

A.A.: Arte Agora

Como um pianista,
que molda a melodia,
que constrói a harmonia
pressionando aquelas teclas
mecanicamente batidas de alma nos dedos,
também um escritor,
que molda o léxico,
que constrói um mundo,
pressionando a ponta da caneta
mecanicamente fluindo na folha de papel.

Um profana as escalas,
outro ridiculariza a sintaxe.
Ambos cientes que,
da sua loucura,
arte será o produto.

Um grava o próprio som,
outro agrafa as folhas soltas.
Um ouve o seu devaneio,
outro lê o seu sonho.
Ambos choram e gritam,
rasgam e partem
na fúria da crítica mais severa de todas.

Sempre insatisfeitos,
cometem a maior loucura,
tornam o que fora seu de todos.
À mercê dos abutres,
dos vários caçadores,
deixam de ser donos do próprio trabalho.

Um espera ser ouvido e trauteado,
outro espera ser lido e citado.
Ambos esperam escapar das amarras da morte,
ambos procuram fugir ao esquecimento.

Após o choro e a raiva,
surge a pequena esperança
que alimenta os pobres artistas
sem lhes dar comida.

O tempo padrasto não para,
não esperando que o fruto amadureça
continua até à época de colheita.
Os nossos dois sonhadores,
agora desprovidos da sua liberdade,
da independência que tanto aclamavam,
esperam só os aplausos e os sorrisos.

O tempo continua sem parar,
o pianista anda pelas aldeias a falsear,
o escritor passa a escrever postais,
já nenhum deles consegue sonhar mais.
O choro e a raiva vencem a esperança,
já nem o diabo lhes concede uma dança,
fecham-se num quarto em plena escuridão
e dizem adeus lembrando apenas o nosso «Não!»

domingo, 6 de agosto de 2017

Desilusão, no fundo, é aprender

A desilusão por si só não nos traz nada a não ser o sofrimento que a acompanha. Uma análise desatenta a um momento em que nos sintamos desiludidos não enriquece de modo algum o nosso ser, aliás, apenas contribui para o estímulo do já mencionado sofrimento. Afinal de contas, como surge esta desilusão? É um desengano, uma deceção, uma disparidade entre o esperado e projetado e a realidade. O fosso entre aquilo que imaginámos e o que acabou por se tornar real é a fonte de sofrimento, resultante de uma frustração por nós mesmos termos falhado nesta previsão, mas que se traduz numa raiva e numa tristeza direcionada para algo ou alguém. A desilusão é tão poderosa que é um medo típico o de desiludir os outros, principalmente aqueles que nos são próximos, o que apenas acrescenta ímpeto ao pessimismo alimentado pela desilusão que nós sentimos e fazemos sentir.

Apesar de, em primeira análise, a desilusão ser vista como macabra ou produto inquestionavelmente disfórico da realidade, após apreciação de todo o momento que envolve a tal desilusão, é possível considerá-la como uma oportunidade gritante de aprendizagem. Uma desilusão surge, na sua essência, de uma idealização de determinado evento ou pessoa, uma criação de expetativas improváveis ou até incompatíveis com o mundo real que acabam por ser «deitadas por terra». É nesta mesma essência que surge o primeiro possível momento de aprendizagem. O instante criativo em que nós elaboramos um conjunto de expetativas é a raiz do problema. Como tal, um dos primeiros passos para utilizar a desilusão como algo também positivo é tentar procurar os aspetos em que a elaboração das expetativas falhou e o porquê de tal ter acontecido. Uma precaução necessária neste processo é não deixar que este comportamento se torne metodicamente obsessivo, pois isso só promoverá ainda mais futuras desilusões (e até motiva desilusões no que toca a este momento de introspeção, quando o processo se afigura mais complexo do que o que era esperado).

Outro dos aspetos que nos pode ensinar bastante é o facto de, após estabelecidas as nossas expetativas, a nossa ação torna-se prisioneira dessa conceção imaginada da realidade, levando à adoção de uma postura derrotista quando as expetativas moldam um real cético de felicidade ou à adoção de uma postura pautada pelo excesso de confiança quando elaboramos uma realidade pintada de cores primaveris para nós. Esta prisão comportamental é fonte de ainda maior frustração e sofrimento quando a desilusão surge, pois existe uma desconexão entre a pessoa que agiu em todo o processo que levou à desilusão e consequente sofrimento e a pessoa que, verdadeiramente, somos (ou imaginamos ser, pois aqui também entram as questões das expetativas em relação a nós mesmos, mas sobre isso deves tu que lês pensar). Com isto em consideração, devemos sempre ter em conta o modo como as nossas expetativas podem moldar o nosso comportamento e tentar analisar as situações em que nos encontramos de modo a não deixar que as nossas ações pertençam a um de dois extremos (excesso de confiança ou a tal postura totalmente derrotista).

Sendo que já foram analisados dois momentos da construção de uma desilusão: as expetativas que se comportam como sementes mal plantadas e os constrangimentos comportamentais que afunilam todo o percurso que precede a desilusão, está na altura de, por fim, falar de como é possível aprender quando no cenário pós-apocalíptico que sucede a desilusão. A partir do momento em que o sentimento de desilusão invade o nosso corpo e a nossa mente, é costume optarmos por um de dois caminhos. Em determinadas ocasiões, o negativismo de toda a situação toma as rédeas do nosso raciocínio e inicia-se a culpabilização. A atribuição de culpa, quer a nós mesmos quer a outras pessoas por um momento de desilusão é, na grande maioria dos casos (atenção que é fulcral ter isto em mente, não é na totalidade dos casos), uma grande falácia por nós cometida. Este tipo de comportamento só enaltece o sofrimento sentido de forma totalmente desnecessária, sendo, portanto, quase que um modo de não confrontar a realidade que levou à tal desilusão através de uma justificação errada do decorrer dos acontecimentos. Em situações diferentes, procedemos através da negação da realidade em que nós nos desiludimos. Como as nossas expetativas foram frustradas, a nossa conceção do real não corresponde ao mundo em que habitamos e essa diferença é causadora de sofrimento, optamos (inconscientemente) pela não aceitação dos factos. Tal cenário, apenas reprime as emoções que são naturais surgirem com a desilusão, nomeadamente, a frustração, a raiva e a tristeza. Com base nestes desenlaces, podemos aproveitar o momento de desilusão para nos confrontarmos com a realidade, tanto a tangível como a intangível, nomeadamente ao nível dos nossos sentimentos. Estes momentos são ideais para sentir com naturalidade as emoções que geralmente acumulamos, assim como, de forma cuidadosa, podemos servimo-nos do nosso racional para transformar uma ocasião de copo meio vazio numa possível lição de copo meio cheio sobre os nossos pensamentos, as nossas emoções, as nossas motivações e os nossos valores.

No fundo, os episódios de desilusão estão presentes na vida de qualquer um de nós, sendo que a tarefa difícil é transformá-los em momentos memoráveis pela aprendizagem em relação ao nosso ser e não só pelo sofrimento incalculável que tal nos proporcionou.


quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Coincidências: magia real

Hoje quero desenvolver o misterioso tema das coincidências. Dependendo da perspetiva que temos em relação ao determinismo nas nossas vidas, as coincidências ganham ou perdem relevância. Se as nossas crenças se inclinarem mais para o determinismo, as coincidências são apenas um resultado curioso de uma linha de ação ou de acontecimentos pré-estabelecida. Caso acreditemos que temos uma maior liberdade e autonomia em relação às nossas vidas, a história é outra.

As coincidências, no segundo caso, acabam sempre por adquirir um lado mágico, algo que as faz parecer impossíveis, quando, na verdade, são situações altamente improváveis. Estas tais situações marcam-nos de tal forma que chegam a moldar o percurso das nossas vidas. Por exemplo: numa história de amor simplificada, uma mulher entra num café e senta-se a beber um café com gelo e sem açúcar enquanto relê o seu romance favorito; no mesmo café, numa mesa à frente desta mulher, encontra-se um homem que está a ler o mesmo livro e a beber o café do mesmo modo; quando ambos reparam um no outro consciencializam-se da coincidência que é aquela situação que dá início a uma relação para toda a vida. Claro que esta história é uma forma excessivamente romantizada de uma coincidência comum, mas serviu o seu propósito de demonstrar como estes episódios nos podem «trocar completamente as voltas».

Para além de poderem ser vistas como catalisadores de mudança, as  coincidências podem, também, ser consideradas a fonte de muito sofrimento. O mero acaso que pode levar à morte de alguém ou um outro acaso que leve ao surgimento de uma paixão unilateral são sementes de um sofrimento profundo, pois não existe uma causa compreensível para tal catástrofe e, como tal, nenhum agente culpabilizável que possa aliviar a dor.

Apesar do pessimismo que espelhei na minha abordagem até este momento, as coincidências são, contudo, altamente celebráveis. O mero acaso que levou a, na imensidão de um universo, existir vida num pequeno planeta «azul» é de louvar, ou ainda outras coisas que nos são mais próximas como a coincidência que é nós termos evoluído de modo a conseguirmos combinar emoções com pensamento racional e, principalmente, a magia que existe em encontrarmos, entre mais de 7 mil milhões de seres humanos, pessoas para amarmos durante toda uma vida.

Claro que as coincidências são igualmente capazes de nos trazer tanto alegria como tristeza, mas é no fator surpresa que está a sua magia.